O papel da aliança cívico-militar na “Revolução Bolivariana”
O papel da aliança cívico-militar na “Revolução Bolivariana” –
Artigo publicado na revista PUC-VIVA, ano 9, n.32, julho/setembro de 2008, São Paulo, APROPUC.
Marcelo Buzetto
Membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais NEILS-PUC/SP,
doutorando em Ciências Sociais PUC-SP
Quando falamos em Venezuela ou em “Revolução Bolivariana”, uma questão que tem despertado inúmeras polêmicas é o papel da chamada “aliança cívico-militar”, principalmente o papel das Forças Armadas neste processo de conflitos e transformações que vem ocorrendo desde 1989, quando milhares de trabalhadores e trabalhadoras foram às ruas contra o neoliberalismo e suas perversas conseqüências sociais. Apresentamos neste breve artigo uma síntese da análise de dois estudiosos da situação venezuelana, com argumentos que nos ajudam a compreender um pouco mais sobre o posicionamento de setores das forças armadas, principalmente em momentos decisivos da luta de classes, como foi o abril de 2002 para os venezuelanos.
Marta Harnecker[1] avalia que existem uma série de fatoresque foram se somando ao longo da formaçãohistórica, política e social da Venezuela que explicam a atualposiçãohegemônica no interior das forçasarmadas daquele país. Segunda esta estudiosa do processo venezuelano:
a) é precisolevaremconsideração a forteinfluência do exemplo e do pensamento de Simon Bolívar, principalmentesuasidéiassobre a integraçãolatino-americana e sobre a obrigação dos militares de defender o povo;
b) a partir da geração de Hugo Chávez, no início dos anos 70, houve uma enormemudança no processo de formação dos oficiais venezuelanos. Após 1971, os mesmos deixaram de ser formados pela “Escola das Américas” e começaram a completarseusestudosuniversitáriosemcursos da AcademiaMilitar Venezuelana, onde tomavam contatocom os autoresclássicos da ciênciapolítica, comtextos de Clausewitz, Mao Tse-tung, etc. De acordocom Harnecker, tal procedimento contribuiu para a formação de umconjunto de oficiaiscomforteinfluência das idéiasprogressistas;
c) essa geração de militares venezuelanos quehojesãooficiaisnão chegaram a se confrontarcomorganizações guerrilheiras de esquerda. E quando eram enviados para o interior do país e/oupararegiões de fronteira o que encontravam eramuitapobreza e desigualdade social;
d) a origempopular da maioria dos oficiais venezuelanos contribuiu, segundo Harnecker, paraquenão fosse criada uma “castamilitar” e paraquenão houvesse discriminação no processo de ascensãohierárquica no interior das forçasArmadas;
e) umsetorbastanteimportante e expressivo dos militares ficou sensibilizado com a situação de pobrezaque vivia a maioria dos trabalhadores, fatoque ganhou maisrelevânciadurante as manifestaçõespopulares de 1989, quando a classedominante do país incitou as ForçasArmadas a reprimir os movimentos de massaem várias partes do país, tendo destaque os conflitosque ocorreram em Caracas;
f) a criação, num primeiromomento na situação de clandestinidade, de uma correntepolítica no seio das ForçasArmadasque buscava resgatar o pensamento de Simón Bolívar, Simón Rodrigues e Ezequiel Zamorra, mártires da lutapelaindependência da Venezuela. Estemovimentoque teve origem no exército, se expandiu paraoutrossetoresmilitares e, com o tempo, recebeu apoio e incorporou civis ligados à organizações operárias e populares. Essa aliança resultou na construção do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR 200);
g) a açãopolítica e militar desencadeada pelo MBR 200 em 04 de fevereiro de 1992, contra o governo de Carlos Andrés Pérez, que resultou numa derrotamilitarmas numa vitóriapolítica, pois deu visibilidadenacional ao movimentoqueatéaquelemomento reunia umgrupomuitopequeno de pessoasem comparação às tarefasque se propunham realizar. A partir daí, Hugo Chávez e seuscompanheiros ficaram conhecidosemtodo o país. Sãopresos, mas libertados doisanosdepois, comofruto de inúmeras mobilizações de massaque pediam a liberdades desses presospolíticos;
h) a vitóriaeleitoral de Chávez, em 1998 levou os “bolivarianos” ao governo, e criou a possibilidade de testarem suasidéias e suaspropostasatravésnãosó da mobilização social e/ou de insurreiçõesmilitares, mastambém dos inúmeros instrumentosque estão vinculados/subordinados ao governofederal. A vitóriaeleitoral ampliou a influência das idéias do MBR 200, transformado empartidopolítico (Movimento Quinta República - MVR), no interior das ForçasArmadas, e muitosmilitares se colocaram à disposiçãoparacontribuir no que fosse necessáriopara o sucesso dos projetos do novogoverno;
i) as sucessivas vitóriaseleitorais do novogoverno criaram uma legalidade e uma legitimidadequenãoencontraparalelo na história venezuelana. A vitória das propostas do MVR e dos demaispartidos de esquerda na AssembléiaConstituinte de 1999 gerou uma nova institucionalidade que acabou fortalecendo as iniciativas do governofederal;
j) o programa de governo de Chávez e as diversas medidas implantadas após 1999, comumconteúdo anti-neoliberal, resgatando umprojeto de desenvolvimentonacionalcom participação decisiva do setorestatal na condução das transformações econômicas, se contrapondo ao processo de privatizações que estava emcursodesde os anos noventa, defesa da soberanianacional, crítica à postura de submissão e dependênciaque se encontrava a Venezuela, elaboração de uma política de defesanacional, sãomotivosquetambém contribuíram paraampliar o apoio do novogovernoentre os setoresmilitares;
k) a existência de uma liderançaque, apesar de ter nascido dentro das ForçasArmadas, conseguiu se tornar uma referênciapara a esmagadora maioria dos pobres do campo e da cidade. Essa combinação de liderançapolítica e militarcom uma autênticavocaçãodemocrática e populartambém ajudou a aglutinaremtorno da figura de Hugo Chávez setores civis e militaresque se uniram na construção da atual “aliança cívico-militar”[2].
Na avaliação de Harnecker, sãoesses os fatoresque tem garantido o apoio dos militares ao governo do presidente Hugo Chávez Frias. Aindasegundo esta autora, durante o golpe deabril de 2002 cerca de 200 oficiaisentregenerais, almirantes, coronéis, tenente-coronéis e oficiaissubalternos participaram ativamente das açõescontra o governo. Neste ano o número de oficiais nas ForçasArmadasera de 8 mil, o queleva à conclusão de que a maioria da oficialidadenão participou da tentativa fracassada de derrubar o presidente. Aindasegundo a mesma, os doisúnicosoficiaisgolpistas de altagraduaçãocom uma efetivaposição de comandodurante esta ação foram o chefe do EstadoMaior, general Ramírez Pérez e o comandante do Exército, general Vasquez Velasco. Entrealguns dos oficiaisque se destacaram na defesa da legalidade e do governo Chávez estão o general Raúl Baduel, na épocacomandante da 42ª. Brigada de Infantaria de Paraquedistas de Maracay (hoje é o Ministro da Defesa), o general Jorge Luis Garcia Carneiro, comandante da 3ª. Divisão de Infantaria do Exército, o coronel Jesús del Valle Morao Cardona, o general de Brigada Wilfredo Ramón Silva, comandante da 3ª. Divisão da Infantaria do Exército da Guarnição de Caracas, o general Virgilio Lameda, comandante da 31ª. Brigada de Infantaria do Forte Tiuna, o general de Brigada da GuardaNacional Luis Felipe Acosta Carlez, subdiretor da Escola de Formação de Oficiais da GuardaNacional, os tenentes-coronéis Jesús Manuel Zambrano Mata e Francisco Espinosa Guyón, alunos da EscolaSuperior do Exército e o capitão Manuel Gregório Bernal, da companhia de Honra 24 de Junho, de Carabobo[3].
JáRodolfo Sanz, emseulivroDialéctica de uma Victoria, avalia que os motivosque levam umsetormajoritário das forçasarmadas a apoiarativamente o governo, ou a se recusar a atuar de maneirailegalemqualquerconspiraçãogolpista, são:
a) a aprovação, na Constituição, do artigo 330, que garante o direito de voto aos militares, fatoque estimulou aindamais o debatesobre os rumospolíticos do país no interior das forçasarmadas;
b) as inúmeras iniciativasgovernamentais dirigidas pormilitares, geralmenteoficiais de carreira, que valorizaram a instituiçãoForçasArmadas, diminuindo a visão predominante emmuitoscírculos de quetalinstituição teria comotarefaúnicaouprincipal a defesa do território e a repressãocontra os movimentos da classe trabalhadora. A participação dos militares no Plano Bolívar 2000, uma açãocoordenadaprincipalmentepeloExército e pelaGuardaNacionalcom o objetivo de contribuirpara o desenvolvimentoeconômico e sociallocal, que atingiu praticamente todos os Estados do país, comintervençõessociais nas áreas de educação, saúde, infra-estrutura, cultura, cooperaçãoagrícola, etc, acabou se tornando a primeiraexperiência massiva, nacional, de participação de soldadosematividades de trabalhocomunitário/social;
c) ainsistência do presidente Hugo Chávez emafirmarque as ForçasArmadassão “a expressão do povoemarmas”, buscando derrubar o muroinvisívelqueemoutromomento separou civis de militares;
d) o respeito e a defesaintransigente da Constituição Bolivariana pelopresidente, pois esta foi fruto de umprocessolegal e legítimo, aprovadapelamaioria esmagadora do povo venezuelano, criando uma institucionalidade que favorece a implementação de muitas propostas do governo;
e) a ruptura da intermediação entre o presidente da República e os soldados. Chávez fez a opção de falardiretamentecom os soldados e com os oficiaismenos graduados, não se submetendo à reuniõessomentecom uma minoria de membros do altocomando das ForçasArmadas. Estecontatodireto contribuiu, segundo o autor citado acima, com a diminuição/eliminação do preconceitoquealgunssetoresmilitares alimentavam contra Chávez;
f) as mudanças no comando de guarniçõesmilitares consideradas estratégicas numa possívelsituação de insubordinaçãooumesmotentativa de golpemilitar[4].
Apesar de reconhecerque o governo da Venezuela teve bastantehabilidadeparamanter o apoio das ForçasArmadas, Sanz afirma que a consolidação deste processo chamado de “aliança cívico-militar” só virá a ocorrerapós a tentativa de golpe emabril de 2002, quando ficou comprovada a participação do governo dos EUA e, também, a falsidade das informações veiculadas pelosprincipaisórgãos de comunicação de massasobre os conflitosque ocorreram em Caracas durante os dias 11, 12 e 13 de abril daquele ano, que responsabilizavam partidários do governopeloassassinato de várias pessoas no centro da capital[5].
Estemesmoautortambém afirma queantes do golpe de 2002 havia muitas dúvidas e incertezasemrelação ao apoio das ForçasArmadas ao governo, pois a capacidade de mobilização da classedominante venezuelana acabava tendo muitainfluênciaemdeterminadossetores civis e militares. Rodolfo Sanz insiste que houve, da parte das forçasque apoiavam o governo, umcertomenosprezo e uma subestimação da força dos setoresmaisconservadores e anti-democráticos, o que resultou no afastamento e prisão de Hugo Chávez pelosgolpistasdurante 48 horas. Emsua avaliação, estemomento de 2002 foi decisivopara a disputa existente no interior das ForçasArmadas. Ele conclui que o governo saiu vitorioso deste processo, masprocuratirar algumas liçõesparacompreender o por quê da participação de setoresimportantes do Exército, GuardaNacional, Marinha e Aeronáutica no golpe. Segundoele, os principaisfatoresque acabavam estimulando a oposição ao governo de Hugo Chávez no seio das ForçasArmadas eram:
a) uma certatradição anti-comunista, forjada durante a lutacontra os movimentosguerrilheiros dos anos 60, ondemuitosoficiais acabavam sendo influenciados peladoutrina de contra-insurgência dos manuaismilitares estadunidenses;
b) a aproximaçãocomCuba e com Fidel Castro; os setoresmaisconservadores exploraram o fato de que a pequenailhacaribenha teve umpapelimportante no apoiopolítico, militar e material aos movimentosguerrilheiros venezuelanos durante os anos 60, além de denunciarem a tentativa de Chávez de implantar o “comunismo” no país;
c) a posição do governoemrelação ao conflitocolombiano. Foi bastante divulgado pelosmeios de comunicação de massa, majoritariamente anti-chavistas, que o presidente venezuelano tinha boas relações e estava financiando as guerrilhas colombianas das ForçasArmadas Revolucionárias da Colômbia- Exército do Povo (FARC-EP) e Exército de LibertaçãoNacional (ELN). Diziam que o governo dava abrigo aos guerrilheiros, que agiam livremente no território venezuelano. O governo teve bastantedificuldadepararebater as acusações e defendersuaposição de não-intervenção no conflitocolombiano, afirmando que a Venezuela estava à disposiçãoparaajudar a construir uma soluçãopolíticapara o mesmo, masnão iria participar de nenhuma açãomilitarcontra esta ou aquela forçabeligerante;
d) as visitas de Chávez ao Iraque e outras naçõesclaramente opostas à políticaexterior dos EUA também preocupavam setoresmilitares venezuelanos, pois o governo estava levando o país a umenfrentamentocom a principal potencia imperialista do momento, e isso trazia muitaincerteza e insegurançaparaoficiaissuperioresque tradicionalmente viam nos EUA umaliado;
e) a utilização, por Chávez, da expressão “Revoluçãopacífica,masnão desarmada” soava como uma ameaça, uma provocaçãoparamuitosque se opunham ao governo. Segundo Sanz, o presidente venezuelano reiterou diversas vezesque “Não sou Allende nem esta Revolução está desarmada. Esta é uma Revoluçãopacífica,masnão desarmada, tem aviões, tanques de guerra e outras coisasmais. Porisso, quenossosinimigosnão se equivoquem...”. Tal afirmação levou os setoresoposicionistas a dizerque Chávez estava preparando a implantação de uma ditaduramilitar no país;
f) a utilização do uniformemilitar de Tenente-Coronel do Exército Venezuelano em várias aparições públicas foi interpretado pelaoposiçãocomo uma demonstração de disposiçãoparaqualquertipo de enfrentamento, mesmoque seja de naturezamilitar, e isto soou comoumquestionamento da própriahierarquiamilitar, pois inúmeros oficiaisconservadores, principalmente de patentessuperiores a de Chávez, ficavam extremamente incomodados e inconformados emreceberordens de um “subalterno”.[6]
Estes elementos que apresentamos, de forma limitada e incompleta, visam estimular uma reflexão sobre o papel das forças armadas na chamada “Revolução Bolivariana”. Temos clareza de que são muitas as contradições presentes nas transformações sociais , econômicas e políticas em curso na Venezuela, mas não podemos ignorar que algo de novo acontece nesse país, pois o nível de consciência política do proletariado e das massas populares, bem como sua capacidade de intervenção ativa e organizada das disputas e conflitos cotidianos, passaram por mudanças significativas nos últimos dezenove anos.
[1] HARNECKER, Marta, Venezuela:militaresjunto al pueblo, Caracas, Ministerio de Comunicacióne Información, 2002, p. 08-12.
[2] HARNECKER, Marta, Venezuela:militaresjunto al pueblo, Idem, p. 08-12.
[4] SANZ, Rodolfo, Dialéctica de uma Victoria, Los Teques, Editorial Nuevo Pensamiento Crítico, 2003, p. 118 a 126.
[5] Os detalhessobre os bastidores da tentativa de golpe civil-militar contra o presidente Hugo Chávez podem ser encontrado no livro de GOLINGER, Eva, El código Chávez, Havana, Editorial de CiênciasSociales, 2005.
[6] SANZ, Rodolfo, Dialéctica de uma Victoria, p. 120 a 123.
O Jornal Brasil de Fato foi lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 25 de janeiro de 2003.
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