terça-feira, 14 de abril de 2009

A Crise Internacional e a Economia Brasileira: O Efeito-Contágio Sobre o Mercado de Crédito em 2008


A Crise Internacional e a Economia Brasileira: O Efeito-Contágio Sobre o Mercado de Crédito em 2008

A crise financeira internacional afetou o mercado de crédito doméstico por meio de vários canais de transmissão. Dois mecanismos se manifestaram desde o início de 2008 e induziram as empresas a demandarem mais recursos internamente, o que pressionou os custos de captação dos bancos via Certificados de Depósito Bancário (CDBs) e, assim, as taxas de juros do crédito. Por um lado, com antecedência ao 15 de setembro (crise do Lehman Brethers), a perda de dinamismo do mercado de capitais, cujo boom em 2007 dependeu amplamente da elevada participação dos investidores estrangeiros. Por outro lado, a retração das linhas de crédito internacionais – que também se apresentou antes de setembro de 2008, mas que se agravou fortemente no último trimestre de 2008 – teve impactos tanto sobre as modalidades de empréstimos às pessoas jurídicas concedidas no país com base em funding externo, como sobre a captação direta das empresas no mercado internacional.

Até o aprofundamento da crise internacional em setembro do ano passado, o crédito doméstico supriu essas lacunas do mercado de capitais e do financiamento com recursos externos, respondendo elasticamente à maior demanda de crédito por parte das empresas. Dois outros fatores interligados concorriam para uma evolução ainda mais acentuada da demanda de crédito: a crescente atividade econômica e o forte impulso que se assistia nas decisões empresariais de investir, tornando maiores as necessidades de recursos para capital de giro e para investimento. Nesse contexto de forte expansão creditícia, em muitos casos, as instituições financeiras adotaram estratégias de alto risco, como a vinculação de empréstimos a contatos de derivativos cambiais e a captação de recursos mediante CDBs com liquidez diária. Essas estratégias resultaram em posições financeiras mais frágeis do lado das empresas, o que aumentou a vulnerabilidade das instituições financiadoras à reversão cíclica que viria a ocorrer a partir de setembro.

Após a falência do banco Lehman Brothers, dois mecanismos adicionais de contágio entraram em operação. Em primeiro lugar, a realocação dos portfólios das filiais dos bancos estrangeiros. A necessidade de fazer caixa para cobrir os elevados prejuízos nos mercados vinculados às hipotecas subprime levou os bancos internacionais não somente a contrair os créditos inter-fronteiras, mas também a encolher suas operações domésticas. Em segundo lugar, os prejuízos das empresas em contratos de derivativos cambiais gerados pela depreciação do real.

O aumento da preferência pela liquidez dos bancos privados em momentos de instabilidade cambial (como em 1998 e 2002) é um fenômeno recorrente na economia brasileira, onde a existência de títulos públicos indexados à taxa Selic e o curto prazo das operações de crédito facilitam a recomposição dos portfólios dessas instituições. Mas, desta feita, um motivo adicional explica o empoçamento inédito da liquidez no mercado interbancário e a abrupta contração do crédito. Os complexos contratos de derivativos cambiais de balcão no mercado doméstico e internacional foram realizados, segundo fontes da imprensa, por cerca de 220 empresas num contexto de forte apreciação do real para se proteger do risco cambial. Com a abrupta desvalorização do real após o aprofundamento da crise em meados de setembro, as perdas de grandes empresas vieram à tona e foram se acumulando.

Nesse contexto, alguns bancos enfrentaram problemas de liquidez devido aos ajustes de margem nessa câmara e na BM&F e ficaram ameaçados de descumprimento dos contratos. O clima de incerteza em relação aos volumes e instituições e empresas envolvidas nas operações de derivativos ampliou a paralisia dos negócios no interbancário e a deterioração das condições de crédito interno. Os bancos de menor porte foram os mais afetados devido à sua maior dependência das captações nesse mercado, que foi agravada pela venda dos CDBs pelas empresas que precisavam de recursos para honrar os compromissos nos contratos de derivativos.

A partir de setembro, o crédito com recursos livres se desacelerou fortemente e várias empresas, que tinham deslanchado decisões de produção e investimento e contavam com a manutenção das linhas de crédito dos bancos privados, se depararam com a impossibilidade de renovar esse fundo e, assim, dar continuidade à evolução de suas operações. Assim, a desaceleração da taxa de crescimento no segmento de pessoa jurídica – de 45% em setembro relativamente a setembro de 2007 para 39,2% em dezembro (contra o mesmo mês do ano anterior), uma queda de quase 6 pontos percentuais (p.p) – significou, diante do quadro de necessidades ampliadas de renovação do fundo rotativo “finance”, uma forte restrição do crédito para as empresas. Ademais, a referida desaceleração só não se refletiu de forma mais intensa nos números oficiais de evolução do crédito em função do efeito da variação cambial sobre o estoque em reais das modalidades com recursos externos.

Já o crédito com recursos livres para pessoas físicas sofreu uma desaceleração menos intensa (de 3,9 p.p) no último trimestre, em função, sobretudo, do comportamento das linhas “cheque especial” e “cartão de crédito”, as únicas que passaram a crescer a taxas mais elevadas. Simultaneamente à desaceleração do crédito com recursos livres, as operações com recursos direcionados ganharam impulso no último trimestre do ano, o que ajuda a explicar o menor recuo da taxa de crescimento do crédito total (de 3,3 p.p) em relação ao crédito com recursos livres. O ritmo de expansão dessas operações elevou-se de forma praticamente contínua desde 2007, impulsionado pelo maior dinamismo dos investimentos (e conseqüente demanda sobre os recursos do BNDES) e pelo boom da construção civil (com impacto sobre o crédito imobiliário), mas a aceleração observada a partir de setembro reflete também um comportamento anti-cíclico.

Os principais responsáveis pelo aumento do ritmo de expansão dos empréstimos com recursos direcionados foram os bancos públicos (BNDES, Caixa Econômica Federal – CEF e Banco do Brasil – BB), que atuaram de forma anti-cíclica para atenuar os efeitos adversos do credit crunch no mercado doméstico, seja expandindo o crédito direcionado, seja adquirindo carteiras de crédito dos bancos privados (caso da CEF e do BB). Em contrapartida, o crédito concedido pelos bancos privados nacionais e pelos bancos estrangeiros seguiu um caminho inverso, se desacelerando, respectivamente, 10,1 p.p e 3,8 p.p.

Contudo, a mudança na dinâmica do mercado de crédito certamente não foi neutra do ponto de vista do acesso ao crédito por parte das empresas. Isto porque, enquanto os empréstimos do BNDES são absorvidos, especialmente, por grandes empresas, as linhas de crédito com recursos livres são mais pulverizadas, se destinando, em grande parte, para micro, pequenas e médias empresas. Tampouco foi neutro o impacto das dificuldades de liquidez no sistema bancário, que a partir da crise internacional, atingiu mais intensamente os bancos de menor porte, que têm importante expressão no crédito para micro e pequenas empresas.

Além de ter afetado a disponibilidade do crédito com recursos livres, a crise também teve efeitos sobre seu custo, aumentando tanto a taxa de captação, especialmente no segmento de pessoa jurídica, como os spreads bancários, que reagem de forma pró-cíclica; ou seja, tendem a ceder em contextos macroeconômicos favoráveis e a se elevar em situações de instabilidade macroeconômica e elevada incerteza. Em relação às demais condições dos empréstimos com recursos livres, a inadimplência das pessoas físicas se elevou a partir de setembro, mas ainda permanecia num patamar relativamente baixo em dezembro.

O Efeito-contágio Sobre o Mercado de Crédito. A crise financeira internacional afetou o mercado de crédito doméstico mediante vários canais de transmissão. Dois mecanismos se manifestaram desde a segunda metade de 2007 e induziram as empresas a demandarem mais recursos internamente, o que pressionou os custos de captação dos bancos via Certificados de Depósito Bancário (CDBs) e, assim, as taxas de juros do crédito.

Por um lado, a perda de dinamismo do mercado de capitais, cujo boom em 2007 dependeu amplamente da elevada participação dos investidores estrangeiros (que absorveram mais de 70% das IPOs realizadas). Já quando da primeira rodada da crise internacional, que teve início em julho daquele ano, a captação de recursos novos pelas empresas brasileiras mediante o mercado de capitais se restringiu significativamente.

Por outro lado, a retração das linhas de crédito internacionais – que também se apresentou com antecedência ao 15 de setembro, mas que se agravou fortemente no último trimestre de 2008 – teve impactos adversos tanto sobre os empréstimos bancários às empresas concedidos no país com base em funding externo (Adiantamentos dos Contratos de Câmbio - ACCs, repasses externos e financiamento às importações), como sobre a captação direta das empresas no mercado internacional (mediante empréstimos dos bancos ou emissão de títulos). Vale observar que os empréstimos com funding externo representavam, no período imediatamente anterior à crise mundial, cerca de 20% do saldo dos empréstimos totais às pessoas jurídicas concedidos com recursos livres pelas instituições financeiras atuantes no crédito no Brasil.

Convém destacar que, até o agravamento da crise internacional em setembro, o crédito doméstico supriu essas lacunas do mercado de capitais e do financiamento com recursos externos, respondendo elasticamente à maior demanda por parte das empresas. Dois outros fatores interligados concorriam para uma evolução ainda mais acentuada da demanda de crédito no mercado doméstico: a crescente atividade econômica e o forte impulso que se assistia nas decisões empresariais de investir, tornando maiores as necessidades de recursos das empresas para capital de giro e para investimento.

Assim, às vésperas da crise internacional, assistia-se a uma inusitada evolução do crédito no país: o crédito qualificado para investimento do BNDES cresceu 21% de janeiro a agosto de 2008 (sobre igual período do ano anterior), enquanto o crédito bancário tradicional para as pessoas jurídicas aumentou 37,8% no mesmo período. Nesse contexto de forte expansão creditícia, em muitos casos, as instituições financeiras passaram a adotar estratégias de risco, como a vinculação de empréstimos a contatos de derivativos cambiais e a captação de recursos mediante CDBs com liquidez diária após o prazo de dois a três meses, para títulos de até dois anos. Essa nova modalidade de captação surgiu no primeiro semestre de 2008, num contexto de acirramento da concorrência entre os bancos pela captação de recursos, desencadeado pela incidência do recolhimento compulsório sobre as operações de leasing a partir de fevereiro (operações que eram utilizadas como fonte alternativa de funding pelos controladores bancários). Essas estratégias resultaram em posições financeiras mais frágeis, o que aumentou a vulnerabilidade de parcela das instituições bancárias (em especial, as de menor porte) à reversão cíclica que viria a ocorrer a partir de setembro.

Com o aprofundamento da crise externa após a falência do banco Lehman Brothers em 15/09/2008, dois mecanismos adicionais de contágio entraram em operação. Em primeiro lugar, a realocação dos portfólios das filiais dos bancos estrangeiros; em segundo, os prejuízos das empresas em contratos de derivativos cambiais causados pela depreciação do real. Tais efeitos se fizeram presentes no sistema financeiro brasileiro em razão de duas de suas características: seu grau elevado de internacionalização (apesar de inferior ao registrado no final dos anos 1990); e a existência de mercados de derivativos cambiais profundos e líquidos. Essas características, por sua vez, estão relacionadas entre si, na medida em que a presença de bancos estrangeiros, com expertise na montagem de operações com instrumentos derivativos, contribuiu para o desenvolvimento desses mercados.

A necessidade de fazer caixa para cobrir os elevados prejuízos nos mercados vinculados às hipotecas subprime levou os bancos internacionais não somente a contrair os créditos inter-fronteiras, mas também a encolher suas operações domésticas. Segundo o BIS (2009), já no terceiro trimestre de 2008 (último dado disponível), a maior redução efetuada por essas instituições nos ativos locais (local claims) ocorreu exatamente no Brasil (US$ 56 bilhões). Ou seja, esse canal de transmissão também se manifestou antes do aprofundamento da crise em meados de setembro e determinou no mercado interno, além de uma retração dos empréstimos às pessoas físicas e jurídicas, a liquidação de aplicações financeiras, com destaque para CDBs de bancos nacionais de médio porte. Vale mencionar que essas aplicações tinham sido estimuladas pela maior rentabilidade oferecida por essas instituições que buscavam funding para ampliar suas captações após a imposição do recolhimento compulsório sobre as operações de leasing.

Os bancos médios também foram especialmente afetados pelo segundo mecanismo adicional de contágio (as perdas das empresas com as operações de derivativos cambiais), em função da sua participação direta como contraparte em algumas dessas operações. Ademais, essas instituições foram as que mais sofreram com a crise de confiança que se instalou no sistema financeiro doméstico a partir da crise internacional e que seria agravada pela revelação das perdas empresas com derivativos cambiais. A desconfiança fez com que grandes aplicadores (empresas, fundos de investimento, fundos de pensão) recuassem em suas operações com bancos de menor porte e se concentrassem nos maiores bancos e nas grandes instituições bancárias estatais.

O aumento da preferência pela liquidez dos bancos privados em momentos de instabilidade cambial (como em 1998 e 2002) é um fenômeno recorrente na economia brasileira, onde a existência de títulos públicos indexados à taxa Selic e o curto prazo das operações de crédito facilitam a recomposição dos ativos dessas instituições diante de quaisquer situações identificadas como de maior risco. Mas, desta feita, um motivo adicional explica o empoçamento inédito da liquidez no mercado interbancário e a abrupta contração do crédito.

Os complexos contratos de derivativos cambiais de balcão no mercado doméstico (registrados na Câmara de Liquidação e Custódia registrado – Cetip) e internacional (onde são negociados os Non-Deliverable Forward – NDF) foram realizados, segundo fontes da imprensa, por cerca de 220 empresas num contexto de forte apreciação do real. Do ponto de vista das empresas exportadoras, tais contratos originalmente objetivavam protegê-las da recorrente valorização da moeda. Contudo, seu objetivo passou a envolver a obtenção de ganhos financeiros e a redução do custo dos empréstimos bancários, por parte de empresas exportadoras e não exportadoras. Esses contratos foram introduzidos no país por bancos estrangeiros e privados nacionais de grande porte, mas logo constariam do leque de produtos dos bancos menores. Segundo informações obtidas na imprensa especializada, foram principalmente essas instituições que ofereceram aos seus clientes (em geral, pequenas e médias empresas) um desconto no custo das dívidas contraídas (enquanto a trajetória do real era de apreciação) em troca da realização desses contratos.

Com a abrupta desvalorização do real após o aprofundamento da crise em meados de setembro, as perdas das empresas vieram à tona. Em relação ao volume total envolvido, há informações somente sobre os contratos firmados no Brasil (em torno de R$ 60,5 bilhões, dos quais R$ 39,5 bilhões em posições vendidas – que realizam perdas com a depreciação do real – no dia 8/10/2008), onde, ao contrário do mercado internacional e dos demais países, as operações de balcão são registradas (na Cetip).

Nesse contexto, também segundo informações da imprensa, alguns bancos enfrentaram problemas de liquidez devido aos ajustes de margem nessa câmara e na BM&F (o mercado organizado de derivativos doméstico, onde realizavam o hedge de suas posições no mercado de balcão) e ficaram ameaçados de descumprimento dos contratos (risco de contraparte). O clima de incerteza em relação aos volumes e, principalmente, quanto às instituições e empresas envolvidas nas operações de derivativos contribuiu para uma virtual paralisia dos negócios no interbancário e para a deterioração das condições de crédito (volumes e custo). Os bancos de menor porte foram os mais afetados devido à sua maior dependência das captações nesse mercado, que foi agravada pela venda dos CDBs pelas empresas que precisavam de recursos para honrar os compromissos nos contratos de derivativos. Por isso, a crise de liquidez que teve início no sistema financeiro brasileiro após o agravamento da crise econômica internacional não foi um processo geral, mas sim restrito às instituições bancárias de menor porte. Diante desse quadro, uma sucessão de medidas foi acionada pelo governo brasileiro para atenuar a restrição de liquidez em moeda doméstica especialmente no caso dessas instituições.

A gravidade da contração do crédito na economia brasileira não se reflete inteiramente nos dados de evolução do estoque total das operações de crédito doméstico, que, devido principalmente aos mecanismos de indexação, mantiveram uma trajetória de aumento no último trimestre de 2008, atingindo R$ 1,23 trilhão (41,3% do PIB) em dezembro, valor recorde da série histórica do Banco Central (que se inicia em meados de 1994). Desse total, R$ 872 bilhões (71%) correspondiam aos créditos com recursos livres (que podem ser alocados a critério do agente financeiro com taxas livremente pactuadas entre as partes) e R$ 355,5 bilhões (29%) aos créditos com recursos direcionados (ou seja, as exigibilidades sobre os depósitos bancários, à vista e de poupança, os fundos de natureza parafiscal e os fundos regionais).

Todavia, o impacto adverso da crise de confiança e dos demais canais de contágio sobre o mercado de crédito doméstico pode ser apreendido na análise desagregada das taxas de crescimento das diversas modalidades de empréstimos, que revela importantes mudanças na sua dinâmica no último trimestre de 2008.

Em agosto, no limiar do aprofundamento da crise financeira internacional, o crédito no país mostrava um aquecimento inédito, como já foi visto, processo este ancorado na expansão dos financiamentos ao setor privado (que inclui recursos livres e direcionados), especialmente aos setores da indústria, do comércio e dos outros serviços. O crédito habitacional também cresceu a taxas mais elevadas nos oito primeiros meses de 2008, beneficiado, por sua vez, pelo boom da construção civil e pelas regras do Sistema Financeiro de Habitação em relação à alocação dos depósitos de poupança nessa modalidade de crédito.

Já os empréstimos para as pessoas físicas (exclusive habitação), que foram os principais determinantes da trajetória altista do crédito total entre 2003 e 2007 (com destaque para o crédito com desconto em folha de pagamento e para aquisições de veículos), passaram a crescer a taxas menores em 2008 (mesmo que ainda elevadas). Do lado da demanda de crédito, o endividamento para a aquisição de bens duráveis necessariamente perde ímpeto na medida em que as famílias repõem o estoque desses bens. Do lado da oferta, os bancos tornam-se mais cautelosos, pois a ampliação do crédito passa a depender, cada vez mais, da incorporação de tomadores de pior qualidade na carteira de empréstimos e, com isso, mais vulneráveis a problemas de inadimplência. Ao longo de 2008, era claramente cadente a taxa de evolução do crédito para pessoas físicas.

É preciso reforçar a observação já feita de que o forte crescimento do crédito bancário doméstico aos setores empresariais até agosto estava associado ao ciclo de investimento em curso desde 2007, bem como à escassez das fontes alternativas de financiamento (mercado de capitais e recursos externos), que se retraíram desde o segundo semestre de 2007. Nesse contexto, as empresas recorreram não somente aos empréstimos destinados a investimentos concedidos pelo BNDES, mas também ao crédito com recursos livres para obter o chamado “fundo rotativo” (finance), destinado à aquisição de matérias-primas e ao financiamento de vendas e de inversões mais “leves”, como certos tipos de máquinas, equipamentos e instalações.

A partir de setembro, contudo, o saldo dos financiamentos com recursos livres desacelerou-se fortemente e várias empresas, que tinham deslanchado decisões de produção e investimento e contavam com a manutenção das linhas dos bancos privados (principalmente, nas modalidades capital de giro e conta garantida) se depararam com a impossibilidade de renovar esse fundo e, assim, dar continuidade à evolução de suas operações. Nesse sentido, a desaceleração da taxa de crescimento do crédito no segmento de pessoa jurídica – de 45% em setembro relativamente a setembro de 2007 para 39,2% em dezembro (contra o mesmo mês do ano anterior), uma queda de quase 6 pontos percentuais (p.p) – significou, diante do quadro de necessidades ampliadas de renovação do fundo rotativo “finance”, uma restrição do crédito para as empresas.

Ademais, a referida desaceleração só não se refletiu de forma mais intensa nos números oficiais de evolução do crédito em função do efeito da variação cambial sobre o estoque em reais das modalidades com recursos externos: de setembro a dezembro, esse estoque cresceu 24,3%, percentual bastante inferior à depreciação acumulada da moeda nacional (43%); descontando essa depreciação, esse estoque diminuiu 15% no período. Ou seja, o saldo do crédito a pessoas jurídicas com funding externo manteve-se em expansão devido exclusivamente ao “efeito-câmbio”, o qual também contaminou a taxa de crescimento do crédito total com recursos livres para pessoas jurídicas.

Se considerarmos somente o crédito às pessoas jurídicas com base em recursos internos, a taxa de crescimento recuou de um patamar de 50% em setembro e outubro (com relação a esses mesmos meses de 2007) para 40,4% em dezembro, uma queda expressiva, de quase 10 pontos percentuais (p.p) em apenas dois meses. A restrição de crédito, como costuma ocorrer, dificultou especialmente o acesso aos financiamentos por empresas de menor porte.

A estabilidade desta taxa de variação do crédito na passagem de setembro para outubro, por sua vez, pode ser explicada, principalmente, por dois fatores. Em primeiro lugar, aos empréstimos de cerca de R$ 8 bilhões contraídos junto a uma grande instituição bancária pública pela Petrobrás no mercado interno, diante da virtual paralisia das linhas externas. Em segundo lugar, os efeitos expansionistas sobre o estoque de crédito dos empréstimos vinculados a contratos de derivativos cambiais: por um lado, os bancos, por razões contratuais, concederam novos recursos para que seus clientes honrassem seus compromissos na Cetip e na BM&F (ou seja, parte dos prejuízos das empresas nesses contratos se transformaram em crédito bancário); por outro lado, a depreciação do real ampliou o custo e, assim, o valor desses empréstimos.

Já o crédito com recursos livres para pessoas físicas (baseado, somente, em recursos internos) sofreu uma desaceleração menos intensa (de 3,9 p.p) no último trimestre, já que a restrição de financiamento em certas linhas foi compensada pelas modalidades de “cheque especial” e “cartão de crédito”, as únicas que passaram a crescer a taxas mais elevadas. Como cabe observar, essas modalidades, que têm custo substancialmente mais elevado, constituem empréstimos rotativos, cujos limites são concedidos por certo prazo, em geral, seis meses, não podendo ser cancelados fora desse prazo. No caso de outras linhas não-rotativas, como crédito pessoal, aquisição de bens duráveis e aquisição de veículos, sofreram retração após o aprofundamento da crise no quarto trimestre de 2008, especialmente nesse último caso, seja por problemas em instituições líderes no segmento, seja pelas dificuldades de venda das carteiras de crédito (via securitização de recebíveis ou cohabitação) pelos bancos de menor porte, que constituía sua principal fonte de funding nos últimos anos. O governo central (por meio do Banco do Brasil) e governos estaduais (como o governo do Estado de São Paulo) ofereceram linhas de financiamento no caso do crédito para aquisição de veículos como tentativa de minimizar o problema.

As séries relativas aos estoques de empréstimos, apesar de apresentarem uma maior inércia, são mais apropriadas para a análise da disponibilidade de crédito na economia do que os dados das concessões acumuladas no mês, que, da forma como são divulgadas pelo Banco Central brasileiro, se referem ao fluxo bruto de empréstimos concedidos pelos bancos e, com isso, não incluem o pagamento do serviço de dívida (juros e amortizações). Contudo, vale apresentar, igualmente, a evolução dessas concessões, disponíveis somente para o segmento de recursos livres. Os dados mostram uma retração do crédito em novembro frente a outubro (de 9,4%), mais intensa no segmento de pessoa jurídica (10,1%), do que no de pessoas físicas (7,8%). Em dezembro, as concessões totais retornam ao patamar de setembro, em razão da recuperação do segmento de pessoa jurídica, ancorada nas linhas baseadas em recursos internos.

No caso das linhas com funding externo, chamam atenção as taxas de crescimento negativas das modalidades ACCs e repasses externos desde fevereiro e abril, respectivamente, certamente reflexo da contração das linhas internacionais que ocorre já no primeiro semestre. A partir de setembro, no entanto, os valores das concessões no âmbito dessas linhas também são contaminados pela depreciação do real. Uma fonte alternativa de informação no caso dos ACCs e demais modalidades de crédito comercial refere-se ao movimento de câmbio contratado nas modalidades “ACC” e “Pagamento Antecipado de Exportação – PA” (modalidade de contratação de câmbio para uma exportação na qual o exportador brasileiro recebe financiamento do exterior, de um banco ou comprador, e fica com um passivo não em moeda, mas em mercadoria. Em alguma data futura a mercadoria será embarcada e a operação encerrada). Esses dados, que não são distorcidos pelo “efeito-câmbio” por serem denominados em dólares, mostram um recuo expressivo dessas modalidades a partir de setembro.

Funding, Taxas de Juros e Spreads. Simultaneamente à desaceleração do crédito com recursos livres do sistema bancário, as chamadas operações com recursos direcionados (com destaque para o crédito rural obrigatório, financiamentos do BNDES, crédito imobiliário com recursos dos depósitos de poupança) ganharam impulso no último trimestre do ano, o que ajuda a explicar o menor recuo da taxa de crescimento do crédito total (de 3,3 p.p) em relação ao crédito com recursos livres. O ritmo de expansão dessas operações elevou-se de forma praticamente contínua desde 2007, impulsionado pelo maior dinamismo dos investimentos (e consequente demanda sobre os recursos do BNDES) e pelo boom da construção civil (com impacto sobre o crédito imobiliário concedido com recursos da poupança), mas a aceleração observada a partir de setembro reflete, principalmente, um comportamento anti-cíclico, com destaque para as operações do BNDES-direto, cuja taxa de crescimento avançou quase 10 pontos percentuais (p.p) entre setembro e dezembro, ou seja, praticamente na mesma intensidade da desaceleração do crédito com recursos livres para pessoas jurídicas com funding interno. Apesar da sua importância como forma de compensação da escassez de crédito, sobretudo para o investimento, as operações do BNDES-direto não poderiam aliviar a situação de acesso ao crédito das empresas de menor porte.

Os principais responsáveis pelo aumento do ritmo de expansão dos empréstimos com recursos direcionados foram os bancos públicos (BNDES, Caixa Econômica Federal – CEF e Banco do Brasil – BB), que atuaram de forma anti-cíclica para atenuar os efeitos adversos do credit crunch no mercado doméstico, seja expandindo o crédito direcionado, seja adquirindo carteiras de crédito dos bancos privados (caso da CEF e do BB). Esta atuação se iniciou em setembro e transparece na expressiva aceleração da taxa de crescimento dos empréstimos do sistema financeiro público, que passou de 30,4% em agosto de 2008 (na comparação com agosto de 2007) para 39,5% em dezembro desse mesmo ano (frente a dezembro do ano anterior), uma alta de 9,1 p.p.. Consequentemente, a participação dos bancos públicos no total das operações de crédito aumentou de 34,2% em setembro (mesmo patamar dos meses anteriores) para 36,3% dezembro com elevação de mais de 2 p.p.

Em contrapartida, o crédito concedido pelos bancos privados nacionais e pelos bancos estrangeiros seguiu um caminho inverso, se desacelerando, respectivamente, 10,1 p.p e 3,8 p.p. Apesar de o BCB não disponibilizar as séries das operações de crédito por propriedade de capital por origem de recursos, é possível sustentar a hipótese de que o recuo menos intenso do crédito total ofertado pelos bancos estrangeiros, que têm acesso mais fácil ao funding externo, deve estar associado à maior importância dos empréstimos indexados à variação da taxa de câmbio neste grupo, que foram inflados pela depreciação do real, o que também explicaria o aumento da sua participação no total das operações de crédito em setembro e outubro.

Assim, a preservação do sistema de crédito direcionado e dos seus principais agentes – as instituições financeiras públicas, como o BNDES, o Banco do Brasil e a CEF – ampliou o raio de manobra do governo brasileiro na gestão do efeito-contágio da crise internacional sobre a evolução do crédito no país, possibilitando que a sua expansão compensasse, em parte, a desaceleração do segmento de recursos livres. Vale mencionar que, no Brasil, esta preservação constituiu uma vantagem para enfrentar o contágio da crise internacional no crédito doméstico, o que não se verificou na maioria dos países emergentes (com exceção da Índia e da China), pois o processo de desregulamentação financeira resultou na desmontagem de sistemas de financiamento público e na privatização dos bancos estatais.
A mudança na dinâmica do mercado de crédito, no entanto, certamente não foi neutra do ponto de vista do acesso ao crédito por parte das empresas. Isso porque, enquanto os empréstimos do BNDES são absorvidos, especialmente, por grandes empresas (que respondem por cerca de 80% do total), as linhas de crédito com recursos livres são mais pulverizadas, se destinando, em grande parte, para micro, pequenas e médias empresas. Tampouco foi neutro o impacto das dificuldades de liquidez que, a partir da crise internacional, atingiu, como foi visto, mais intensamente os bancos de menor porte, que têm importante expressão no crédito para micro e pequenas empresas.

Além de ter afetado a disponibilidade do crédito com recursos livres, a crise também teve efeitos sobre seu custo, aumentando tanto a taxa de captação, especialmente no segmento de pessoa jurídica, como os spreads bancários, que reagem de forma pró-cíclica, ou seja, tendem a ceder em contextos macroeconômicos favoráveis e a se elevar em situações de instabilidade macroeconômica e maior incerteza.

O aumento da aversão aos riscos passou a influir nos spreads e, assim, na taxa de juros dos empréstimos com antecedência ao aprofundamento da crise internacional em setembro. No segmento de pessoas físicas ocorreu em junho e, em julho, no de pessoas jurídicas. Todavia, nos dois casos, a alta tornou-se mais pronunciada após o aprofundamento da crise mundial. No caso das pessoas jurídicas, as perdas das empresas com derivativos cambiais contribuíram para o aumento dos prêmios de risco. De forma geral, os bancos renovaram os empréstimos vinculados a esses contratos, mas elevaram os spreads incidentes sobre as operações. Em contrapartida, a elevação nas taxas de juros foi menor em função da queda na taxa de captação no último trimestre, induzida, provavelmente, pelas sucessivas medidas do governo voltadas para a redução dos compulsórios.

Em relação às demais condições dos empréstimos com recursos livres, a inadimplência das pessoas físicas se elevou a partir de setembro, mas ainda permanecia num patamar relativamente baixo em dezembro. Já os prazos médios, a despeito de terem atingido seu recorde histórico no final de 2008, interromperam sua trajetória de crescimento e se mantiveram praticamente estáveis no último trimestre, também como reflexo da maior aversão aos riscos dos bancos privados.

Num contexto em que as taxas de juros dos financiamentos caíam somente de forma marginal, os prazos maiores foram um dos principais indutores da maior demanda de crédito por parte das pessoas físicas, por reduzir os valores das prestações. Isso contribuiu para alavancar o consumo das famílias e para ampliar o crescimento econômico brasileiro entre 2004 e 2008. O estancamento desse processo e seu provável retrocesso ao longo do corrente ano, certamente terão efeitos muito negativos no crescimento da economia em 2009.

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