terça-feira, 26 de maio de 2009

O papel da aliança cívico-militar na “Revolução Bolivariana”

O papel da aliança cívico-militar na “Revolução Bolivariana” –

Artigo publicado na revista PUC-VIVA, ano 9, n.32, julho/setembro de 2008, São Paulo, APROPUC.

Marcelo Buzetto

Membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais NEILS-PUC/SP,

doutorando em Ciências Sociais PUC-SP

Quando falamos em Venezuela ou em “Revolução Bolivariana”, uma questão que tem despertado inúmeras polêmicas é o papel da chamada “aliança cívico-militar”, principalmente o papel das Forças Armadas neste processo de conflitos e transformações que vem ocorrendo desde 1989, quando milhares de trabalhadores e trabalhadoras foram às ruas contra o neoliberalismo e suas perversas conseqüências sociais. Apresentamos neste breve artigo uma síntese da análise de dois estudiosos da situação venezuelana, com argumentos que nos ajudam a compreender um pouco mais sobre o posicionamento de setores das forças armadas, principalmente em momentos decisivos da luta de classes, como foi o abril de 2002 para os venezuelanos.

Marta Harnecker[1] avalia que existem uma série de fatores que foram se somando ao longo da formação histórica, política e social da Venezuela que explicam a atual posição hegemônica no interior das forças armadas daquele país. Segunda esta estudiosa do processo venezuelano:

a) é preciso levar em consideração a forte influência do exemplo e do pensamento de Simon Bolívar, principalmente suas idéias sobre a integração latino-americana e sobre a obrigação dos militares de defender o povo;

b) a partir da geração de Hugo Chávez, no início dos anos 70, houve uma enorme mudança no processo de formação dos oficiais venezuelanos. Após 1971, os mesmos deixaram de ser formados pelaEscola das Américas” e começaram a completar seus estudos universitários em cursos da Academia Militar Venezuelana, onde tomavam contato com os autores clássicos da ciência política, com textos de Clausewitz, Mao Tse-tung, etc. De acordo com Harnecker, tal procedimento contribuiu para a formação de um conjunto de oficiais com forte influência das idéias progressistas;

c) essa geração de militares venezuelanos que hoje são oficiais não chegaram a se confrontar com organizações guerrilheiras de esquerda. E quando eram enviados para o interior do país e/ou para regiões de fronteira o que encontravam era muita pobreza e desigualdade social;

d) a origem popular da maioria dos oficiais venezuelanos contribuiu, segundo Harnecker, para que não fosse criada uma “casta militar” e para que não houvesse discriminação no processo de ascensão hierárquica no interior das forças Armadas;

e) um setor bastante importante e expressivo dos militares ficou sensibilizado com a situação de pobreza que vivia a maioria dos trabalhadores, fato que ganhou mais relevância durante as manifestações populares de 1989, quando a classe dominante do país incitou as Forças Armadas a reprimir os movimentos de massa em várias partes do país, tendo destaque os conflitos que ocorreram em Caracas;

f) a criação, num primeiro momento na situação de clandestinidade, de uma corrente política no seio das Forças Armadas que buscava resgatar o pensamento de Simón Bolívar, Simón Rodrigues e Ezequiel Zamorra, mártires da luta pela independência da Venezuela. Este movimento que teve origem no exército, se expandiu para outros setores militares e, com o tempo, recebeu apoio e incorporou civis ligados à organizações operárias e populares. Essa aliança resultou na construção do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR 200);

g) a ação política e militar desencadeada pelo MBR 200 em 04 de fevereiro de 1992, contra o governo de Carlos Andrés Pérez, que resultou numa derrota militar mas numa vitória política, pois deu visibilidade nacional ao movimento que até aquele momento reunia um grupo muito pequeno de pessoas em comparação às tarefas que se propunham realizar. A partir daí, Hugo Chávez e seus companheiros ficaram conhecidos em todo o país. São presos, mas libertados dois anos depois, como fruto de inúmeras mobilizações de massa que pediam a liberdades desses presos políticos;

h) a vitória eleitoral de Chávez, em 1998 levou os “bolivarianos” ao governo, e criou a possibilidade de testarem suas idéias e suas propostas através não da mobilização social e/ou de insurreições militares, mas também dos inúmeros instrumentos que estão vinculados/subordinados ao governo federal. A vitória eleitoral ampliou a influência das idéias do MBR 200, transformado em partido político (Movimento Quinta República - MVR), no interior das Forças Armadas, e muitos militares se colocaram à disposição para contribuir no que fosse necessário para o sucesso dos projetos do novo governo;

i) as sucessivas vitórias eleitorais do novo governo criaram uma legalidade e uma legitimidade que não encontra paralelo na história venezuelana. A vitória das propostas do MVR e dos demais partidos de esquerda na Assembléia Constituinte de 1999 gerou uma nova institucionalidade que acabou fortalecendo as iniciativas do governo federal;

j) o programa de governo de Chávez e as diversas medidas implantadas após 1999, com um conteúdo anti-neoliberal, resgatando um projeto de desenvolvimento nacional com participação decisiva do setor estatal na condução das transformações econômicas, se contrapondo ao processo de privatizações que estava em curso desde os anos noventa, defesa da soberania nacional, crítica à postura de submissão e dependência que se encontrava a Venezuela, elaboração de uma política de defesa nacional, são motivos que também contribuíram para ampliar o apoio do novo governo entre os setores militares;

k) a existência de uma liderança que, apesar de ter nascido dentro das Forças Armadas, conseguiu se tornar uma referência para a esmagadora maioria dos pobres do campo e da cidade. Essa combinação de liderança política e militar com uma autêntica vocação democrática e popular também ajudou a aglutinar em torno da figura de Hugo Chávez setores civis e militares que se uniram na construção da atualaliança cívico-militar”[2].

Na avaliação de Harnecker, são esses os fatores que tem garantido o apoio dos militares ao governo do presidente Hugo Chávez Frias. Ainda segundo esta autora, durante o golpe de abril de 2002 cerca de 200 oficiais entre generais, almirantes, coronéis, tenente-coronéis e oficiais subalternos participaram ativamente das ações contra o governo. Neste ano o número de oficiais nas Forças Armadas era de 8 mil, o que leva à conclusão de que a maioria da oficialidade não participou da tentativa fracassada de derrubar o presidente. Ainda segundo a mesma, os dois únicos oficiais golpistas de alta graduação com uma efetiva posição de comando durante esta ação foram o chefe do Estado Maior, general Ramírez Pérez e o comandante do Exército, general Vasquez Velasco. Entre alguns dos oficiais que se destacaram na defesa da legalidade e do governo Chávez estão o general Raúl Baduel, na época comandante da 42ª. Brigada de Infantaria de Paraquedistas de Maracay (hoje é o Ministro da Defesa), o general Jorge Luis Garcia Carneiro, comandante da 3ª. Divisão de Infantaria do Exército, o coronel Jesús del Valle Morao Cardona, o general de Brigada Wilfredo Ramón Silva, comandante da 3ª. Divisão da Infantaria do Exército da Guarnição de Caracas, o general Virgilio Lameda, comandante da 31ª. Brigada de Infantaria do Forte Tiuna, o general de Brigada da Guarda Nacional Luis Felipe Acosta Carlez, subdiretor da Escola de Formação de Oficiais da Guarda Nacional, os tenentes-coronéis Jesús Manuel Zambrano Mata e Francisco Espinosa Guyón, alunos da Escola Superior do Exército e o capitão Manuel Gregório Bernal, da companhia de Honra 24 de Junho, de Carabobo[3].

Rodolfo Sanz, em seu livro Dialéctica de uma Victoria, avalia que os motivos que levam um setor majoritário das forças armadas a apoiar ativamente o governo, ou a se recusar a atuar de maneira ilegal em qualquer conspiração golpista, são:

a) a aprovação, na Constituição, do artigo 330, que garante o direito de voto aos militares, fato que estimulou ainda mais o debate sobre os rumos políticos do país no interior das forças armadas;

b) as inúmeras iniciativas governamentais dirigidas por militares, geralmente oficiais de carreira, que valorizaram a instituição Forças Armadas, diminuindo a visão predominante em muitos círculos de que tal instituição teria como tarefa única ou principal a defesa do território e a repressão contra os movimentos da classe trabalhadora. A participação dos militares no Plano Bolívar 2000, uma ação coordenada principalmente pelo Exército e pela Guarda Nacional com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento econômico e social local, que atingiu praticamente todos os Estados do país, com intervenções sociais nas áreas de educação, saúde, infra-estrutura, cultura, cooperação agrícola, etc, acabou se tornando a primeira experiência massiva, nacional, de participação de soldados em atividades de trabalho comunitário/social;

c) a insistência do presidente Hugo Chávez em afirmar que as Forças Armadas são “a expressão do povo em armas”, buscando derrubar o muro invisível que em outro momento separou civis de militares;

d) o respeito e a defesa intransigente da Constituição Bolivariana pelo presidente, pois esta foi fruto de um processo legal e legítimo, aprovada pela maioria esmagadora do povo venezuelano, criando uma institucionalidade que favorece a implementação de muitas propostas do governo;

e) a ruptura da intermediação entre o presidente da República e os soldados. Chávez fez a opção de falar diretamente com os soldados e com os oficiais menos graduados, não se submetendo à reuniões somente com uma minoria de membros do alto comando das Forças Armadas. Este contato direto contribuiu, segundo o autor citado acima, com a diminuição/eliminação do preconceito que alguns setores militares alimentavam contra Chávez;

f) as mudanças no comando de guarnições militares consideradas estratégicas numa possível situação de insubordinação ou mesmo tentativa de golpe militar[4].

Apesar de reconhecer que o governo da Venezuela teve bastante habilidade para manter o apoio das Forças Armadas, Sanz afirma que a consolidação deste processo chamado de “aliança cívico-militar” virá a ocorrer após a tentativa de golpe em abril de 2002, quando ficou comprovada a participação do governo dos EUA e, também, a falsidade das informações veiculadas pelos principais órgãos de comunicação de massa sobre os conflitos que ocorreram em Caracas durante os dias 11, 12 e 13 de abril daquele ano, que responsabilizavam partidários do governo pelo assassinato de várias pessoas no centro da capital[5].

Este mesmo autor também afirma que antes do golpe de 2002 havia muitas dúvidas e incertezas em relação ao apoio das Forças Armadas ao governo, pois a capacidade de mobilização da classe dominante venezuelana acabava tendo muita influência em determinados setores civis e militares. Rodolfo Sanz insiste que houve, da parte das forças que apoiavam o governo, um certo menosprezo e uma subestimação da força dos setores mais conservadores e anti-democráticos, o que resultou no afastamento e prisão de Hugo Chávez pelos golpistas durante 48 horas. Em sua avaliação, este momento de 2002 foi decisivo para a disputa existente no interior das Forças Armadas. Ele conclui que o governo saiu vitorioso deste processo, mas procura tirar algumas lições para compreender o por quê da participação de setores importantes do Exército, Guarda Nacional, Marinha e Aeronáutica no golpe. Segundo ele, os principais fatores que acabavam estimulando a oposição ao governo de Hugo Chávez no seio das Forças Armadas eram:

a) uma certa tradição anti-comunista, forjada durante a luta contra os movimentos guerrilheiros dos anos 60, onde muitos oficiais acabavam sendo influenciados pela doutrina de contra-insurgência dos manuais militares estadunidenses;

b) a aproximação com Cuba e com Fidel Castro; os setores mais conservadores exploraram o fato de que a pequena ilha caribenha teve um papel importante no apoio político, militar e material aos movimentos guerrilheiros venezuelanos durante os anos 60, além de denunciarem a tentativa de Chávez de implantar o “comunismo” no país;

c) a posição do governo em relação ao conflito colombiano. Foi bastante divulgado pelos meios de comunicação de massa, majoritariamente anti-chavistas, que o presidente venezuelano tinha boas relações e estava financiando as guerrilhas colombianas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia- Exército do Povo (FARC-EP) e Exército de Libertação Nacional (ELN). Diziam que o governo dava abrigo aos guerrilheiros, que agiam livremente no território venezuelano. O governo teve bastante dificuldade para rebater as acusações e defender sua posição de não-intervenção no conflito colombiano, afirmando que a Venezuela estava à disposição para ajudar a construir uma solução política para o mesmo, mas não iria participar de nenhuma ação militar contra esta ou aquela força beligerante;

d) as visitas de Chávez ao Iraque e outras nações claramente opostas à política exterior dos EUA também preocupavam setores militares venezuelanos, pois o governo estava levando o país a um enfrentamento com a principal potencia imperialista do momento, e isso trazia muita incerteza e insegurança para oficiais superiores que tradicionalmente viam nos EUA um aliado;

e) a utilização, por Chávez, da expressãoRevolução pacífica, mas não desarmada” soava como uma ameaça, uma provocação para muitos que se opunham ao governo. Segundo Sanz, o presidente venezuelano reiterou diversas vezes queNão sou Allende nem esta Revolução está desarmada. Esta é uma Revolução pacífica, mas não desarmada, tem aviões, tanques de guerra e outras coisas mais. Por isso, que nossos inimigos não se equivoquem...”. Tal afirmação levou os setores oposicionistas a dizer que Chávez estava preparando a implantação de uma ditadura militar no país;

f) a utilização do uniforme militar de Tenente-Coronel do Exército Venezuelano em várias aparições públicas foi interpretado pela oposição como uma demonstração de disposição para qualquer tipo de enfrentamento, mesmo que seja de natureza militar, e isto soou como um questionamento da própria hierarquia militar, pois inúmeros oficiais conservadores, principalmente de patentes superiores a de Chávez, ficavam extremamente incomodados e inconformados em receber ordens de umsubalterno”.[6]

Estes elementos que apresentamos, de forma limitada e incompleta, visam estimular uma reflexão sobre o papel das forças armadas na chamada “Revolução Bolivariana”. Temos clareza de que são muitas as contradições presentes nas transformações sociais , econômicas e políticas em curso na Venezuela, mas não podemos ignorar que algo de novo acontece nesse país, pois o nível de consciência política do proletariado e das massas populares, bem como sua capacidade de intervenção ativa e organizada das disputas e conflitos cotidianos, passaram por mudanças significativas nos últimos dezenove anos.


[1] HARNECKER, Marta, Venezuela:militares junto al pueblo, Caracas, Ministerio de Comunicación e Información, 2002, p. 08-12.

[2] HARNECKER, Marta, Venezuela:militares junto al pueblo, Idem, p. 08-12.

[3] Idem, Ibidem, p.13 e 222.

[4] SANZ, Rodolfo, Dialéctica de uma Victoria, Los Teques, Editorial Nuevo Pensamiento Crítico, 2003, p. 118 a 126.

[5] Os detalhes sobre os bastidores da tentativa de golpe civil-militar contra o presidente Hugo Chávez podem ser encontrado no livro de GOLINGER, Eva, El código Chávez, Havana, Editorial de Ciências Sociales, 2005.

[6] SANZ, Rodolfo, Dialéctica de uma Victoria, p. 120 a 123.

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